sábado, 11 de maio de 2013

Abstrato natural

Procuro abstrair-me de fantasias, dos tentáculos tentadores dos sonhos cujas ilusões nos aparecem verdadeiras à percepção. Olho em volta, tentando filtrar o real, mas tudo o que encontro é gelado, é triste. Sento-me na esplanada, peço uma meia de leite, sem sonhos por favor, e é tudo, perguntam-me, sim, se faz favor. Uma meia de leite e é tudo, sem sonhos. Traz-me educadamente o pedido e mal me olha nos olhos, avental branco, camisa bem passada a ferro, ar esgotado. São dez e meia da noite, faz tempo que a lua se colocou além, um pouco acima da ponte, parecendo pousar para a calma cidade, espelhando-se no rio porque brilho lhe falta pela noite. Uma meia de leite, quente, enternecedora para as mãos e é tudo, sem sonhos. Embora, por estas horas, bastasse uma distracção para que a loucura esvoaçasse nesta mente, vibrasse nas cordas vocais, tremesse pelas mãos, sem precisar de aguentar até poder escrevê-la. Olho em volta, um casal duas mesas atrás, conversam baixinho ou sussurram amor, à minha direita, um senhor de idade bebe em pequenos goles uma cerveja, de olhos fixos no televisor. É quarta-feira, o estabelecimento tem pouco movimento. Olhe, podia chegar aqui, por favor? O empregado aproxima-se devagar, olhar baixo, no mais comum movimento da rotina, deslocando-se para atender outro das centenas de clientes que serve por dia. Sim, deseja mais alguma coisa? Sorrio-lhe e atento na expressão despreocupada, porém, lentamente e num leve esgar, formando traços de impaciência e seguidamente de incompreensão. Desejo sim, poderia sentar-se um pouco aqui e conversar comigo? Como diz, ele questiona, de todos os pedidos que lhe haviam feito este era sem dúvida o que mais o espantara. Homem de cerca de vinte e três anos, bom aspecto, apesar de exausto, pele tom de castanha, olhos de ébano, dentes perfeitamente alinhados. Porém, não me consigo recordar se era bonito ou não, levei-lhe os traços comigo e agora escrevo-os, mas não estudei tempo suficiente o seu rosto para sorver a essência dos seus modos. Tampouco fiquei tempo suficiente para lhe escutar uma resposta, pois de súbito, a loucura expectante existente em mim quis caminhar pela noite, junto à foz, contando estrelas e brilhando à Lua, que tão cheia de luz estava às onze horas... Obrigada, aqui tem, fique com  troco, disse-lhe. Oh, e veja como está linda a noite de hoje, disse ainda, sobre o ombro, enquanto abria a porta para sair. 
                                                                                                      Iolanda Oliveira 

1 comentário:

Cainã Ito disse...

Que texto mais belo Iolanda Oliveira.
Olha, não é pelo fato de eu amar cafeteria e ter me identificado demais com o texto. Mas eu amei sua escrita e como escreve. Fiquei matutando se esse fato ocorreu mesmo ou partiu de sua criação. Gostei do ponto de vista que colocou no texto.
PS: Não filtre tudo na vida rs, e o gélido é o que mescla com o quente da vida. O triste é belo = )
Parabéns pelo texto. Irei ler os outros aos poucos e comentando.