sábado, 19 de outubro de 2013

Supernova

Pousei as chaves na cómoda e libertei-me do casaco húmido da chuva. Chego a casa, e transpiro o lento vazar das ideias através da percepção- ocorrem-me coisas, mas não me ocorre o que elas serão- escuto o tic-tac-tic-tac ensurdecedor do marcador do tempo. Chove torrencialmente lá fora como um comum dia de Outono. 
        Na viagem, observava pela janela do carro a mudança das cores. Tudo indica mudança, tudo numa lenta e gradual transformação cromática- o verde escuro das folhas dando lugar ao castanho avermelhado, o azul cristalino do céu sendo ocupado por disformes e pesados tons cinzentos- eu pergunto-me, quantos anjos se perderão nas nuvens?- recordo-me: haviam-me dito no dia anterior que qualquer que fosse o céu que eu escolhesse olhar, as nuvens por mim pintadas seriam sempre as mais fantásticas. Trouxe então um pedaço desse céu no bolso e no outro, uma ave. Sempre trago uma ave comigo, mas nem sempre prescindo dela para voar. 
        Há mais do que uma lacuna no manto da minha mente, incorrigíveis fendas numa parede já rugosa, se eu fosse céu o ar esquivar-se-ia para fora de mim e da atmosfera escorria do meu sangue. Se fossem as nuvens encarnadas, toda a chuva seria eu. Mas desfaço a mala de viagem, suspirando e descansando por entre explosões solares alucinogénias, luz e calor e toda uma onda de energia avança sob a forma de espectros pelo vácuo do meu corpo e pára na ponta dos dedos, há um formigueiro crescente. Golfadas de ar para manter o entendimento fresco, por momentos deixo de responder à minha consciência e, em vez disso, registo até a mais leve vibração do ar- estas vozes que penetram a nossa compreensão e se guardam para além dela, algures entre a ilusão e o sonho, onde ambas se fundem numa realidade semi-corpórea e inteligente. 
        Escrevo, incessantemente escrevo, escolhendo as palavras como quem planeia uma jogada de xadrez, porém, tão impulsivamente como quem se consome numa paixão arrebatadora e incontestável. O tempo continua parado e anuncia-se a sua retoma. O gato sobe-me para o colo, adormece lentamente na sua vulnerabilidade inconsciente. Da vida, resta-me somente o que me restar e num sôfrego desespero não sei que mais fazer com o que sobra a não ser desperdiçá-lo. Sou uma mera aprendiz do mundo, uma reles leitora de mentes, uma vulgar escrevente de sensações.

                                                                               iolanda oliveira, creio eu

domingo, 7 de julho de 2013

Sou um deserto

Caminhas pelo meu corpo com...
- as pontas dos dedos.
             ]qual areal em chamas
              que calcas descalço[
Sou um deserto.
 
Procuras algo
Será o abismo?
Está mais fresco lá
- eu tão cálida.
 
E é numa vertigem 
Que te entregas
               
                e 
              
                cais

- para dentro de mim.
 
                                                  Iolanda Oliveira

quarta-feira, 5 de junho de 2013

cemos; çados nós

Entardecemos, entrelaçados nós.
Um sol diluído pelas paredes do quarto e caramelizado no meu cabelo- corpos desnudos, gotículas de suor, odores. Estendes-me a mão num areal de mantos, onde a sonolência é um único mar, de cristal, onde todos os sonhos estão ao alcance da pele. 
Tacteando- sob a luz âmbar do entardecer, entrelaçados nós- encontras-me em curvas que nunca senti, vales, encostas, colinas de mim que ousas explorar. 
Tocas-me- seca eu, as tuas mãos parecem ter sede- vagueias à procura de rios, de água que te afogue em lumes brandos, e escalas o peito, a minha boca é um poço. 
Tons de mel lentamente gelam os lençóis e, algures em céus arroxeados, acendem-se estrelas, humildes chamas das noites, cúmplices, ladras de pudores. 
Anoitecemos, abraçados nós.

domingo, 2 de junho de 2013

Asas

Asas, tragam-me asas sem qualquer ave
Peço
E repito, tão triste e fortemente
Que em minhas costas
Um par delas se ergue.

Asas crescem de mim
E eu ainda não voei.

Iolanda Oliveira

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Dançar como aves

Talvez se o meu cabelo cortasse o ar delicadamente num rodopio- em passos de anjo e pequenos voos, braços arqueados como asas e pés descalços- soubesse eu dançar como aves- e cobriria os meus olhos de sombras para que os visses também, a eles, dançar. Talvez se os meus modos fossem mais delicados, como perfume de framboesa num jardim de inverno e com ponta dos meus dedos te encontrasse amor, pousando no chão do meu salto de mariposa em chamas, com a ponta dos dedos te derretesse a pele, qual neve. Encontrasse eu o segredo de tal beleza, não fosse eu mulher das palavras, e reproduzir em perfeição cada um desses gestos, e, exclamo suspiros, oh, oh... pudesse. Talvez pudesses também tu, gostar de mim. 

Iolanda Oliveira

quarta-feira, 22 de maio de 2013


 Pelas noites descansa o corpo,
Que acorda para a insónia,
Pede-te que venhas, lento-
Quente, como chamas que não ferem.
Pede-te que venhas... Vem.

Fala-me de ontem e de amanhã
Que o hoje cansa, cedo-
Logo pela manhã.
Fala-me do que foi, do que será,
Porque só do que é se tem medo.

Mas apaga as luzes, se vieres,
Que olhar-te tem um preço:
Querer que fiques...
Posso antes ouvir-te, tocar-te e imaginar
Apenas, que imagino que te tenho.

E adormecer em pele morna
De nos termos.
Sob o som do relógio que compassa o ritmo
Do esquecimento. Acenderias um cigarro?
Sorver dele o meu sono.

Faz o tempo perder as horas...
O infinito perder o tempo.
Faz com que seja- agora!-
Eterno, esse momento.
Mas, no fim, não me acordes, vai embora.
 
Iolanda Oliveira

sábado, 11 de maio de 2013

Abstrato natural

Procuro abstrair-me de fantasias, dos tentáculos tentadores dos sonhos cujas ilusões nos aparecem verdadeiras à percepção. Olho em volta, tentando filtrar o real, mas tudo o que encontro é gelado, é triste. Sento-me na esplanada, peço uma meia de leite, sem sonhos por favor, e é tudo, perguntam-me, sim, se faz favor. Uma meia de leite e é tudo, sem sonhos. Traz-me educadamente o pedido e mal me olha nos olhos, avental branco, camisa bem passada a ferro, ar esgotado. São dez e meia da noite, faz tempo que a lua se colocou além, um pouco acima da ponte, parecendo pousar para a calma cidade, espelhando-se no rio porque brilho lhe falta pela noite. Uma meia de leite, quente, enternecedora para as mãos e é tudo, sem sonhos. Embora, por estas horas, bastasse uma distracção para que a loucura esvoaçasse nesta mente, vibrasse nas cordas vocais, tremesse pelas mãos, sem precisar de aguentar até poder escrevê-la. Olho em volta, um casal duas mesas atrás, conversam baixinho ou sussurram amor, à minha direita, um senhor de idade bebe em pequenos goles uma cerveja, de olhos fixos no televisor. É quarta-feira, o estabelecimento tem pouco movimento. Olhe, podia chegar aqui, por favor? O empregado aproxima-se devagar, olhar baixo, no mais comum movimento da rotina, deslocando-se para atender outro das centenas de clientes que serve por dia. Sim, deseja mais alguma coisa? Sorrio-lhe e atento na expressão despreocupada, porém, lentamente e num leve esgar, formando traços de impaciência e seguidamente de incompreensão. Desejo sim, poderia sentar-se um pouco aqui e conversar comigo? Como diz, ele questiona, de todos os pedidos que lhe haviam feito este era sem dúvida o que mais o espantara. Homem de cerca de vinte e três anos, bom aspecto, apesar de exausto, pele tom de castanha, olhos de ébano, dentes perfeitamente alinhados. Porém, não me consigo recordar se era bonito ou não, levei-lhe os traços comigo e agora escrevo-os, mas não estudei tempo suficiente o seu rosto para sorver a essência dos seus modos. Tampouco fiquei tempo suficiente para lhe escutar uma resposta, pois de súbito, a loucura expectante existente em mim quis caminhar pela noite, junto à foz, contando estrelas e brilhando à Lua, que tão cheia de luz estava às onze horas... Obrigada, aqui tem, fique com  troco, disse-lhe. Oh, e veja como está linda a noite de hoje, disse ainda, sobre o ombro, enquanto abria a porta para sair. 
                                                                                                      Iolanda Oliveira 

sábado, 27 de abril de 2013

Diário da insanidade

Algo que chega aos sentidos neste instante, me cruza a mente- silencio o som, quero ouvir-me por dentro: Posso até amá-los por momentos, ou que os momentos se prolonguem por dias e anos. Mas eu sei que um dia, inevitavelmente vindouro, terei de matar esses corações, assim friamente como quem espreme uma nectarina com a mão. Ou então- e porque não?- recortar apenas o espaço onde o meu tom se entranhou transformando aquela batida numa outra, mais minha que sua. Vocês devem estar a perguntar-se porquê. Simplesmente, porque os corações ao mesmo ritmo não igualam mentes na mesma frequência. (...) 
                                                                            Iolanda Oliveira, in her own diary

terça-feira, 23 de abril de 2013

Silence's echo

Tomorrow’s day, it suddenly

Melted away along with her dreams

She just wanted to go home

Though, she has none.



In the middle of a giddy bridge

She heard the birds on the silence’s echo

And looked around to find her love

She had none.



While the city lights sheltered her skin

The rain messed up her hair.

She burned her pale wrist with her daddy’s

Lighter. She didn’t care.

                                                                                                         Iolanda Oliveira
 

domingo, 21 de abril de 2013

Percorro-te com o beijo de um olhar
És feito de pedaços de céu-
Num dia de Agosto.
Pudesse eu tocar-te as feridas que...
Deves ser do mais belo quando choras.

Esqueço-me do passado
Quando me vasculhas de vergonhas.
Somente de verdade és feito,
À parte daquilo que escondes.

Gostaria que te sentasses aqui-
Agora- e me roubasses o lápis-
Da mão- como me roubas a 
Atenção. 

Bloqueio.
Não sei que dizer-te senão
Que te queria-
Mais perto- e tocar o céu fechado
Com as pontas dos dedos ou...
Com a ousadia de um beijo.

É pedir muito, eu sei.
É desperdiçar papel com o que nunca
Te direi. Mas, olha-me:
Sou escritora.
E tu, eterno agora. 

                                                                                                    Iolanda Oliveira

A cor do céu de hoje

     Entro no café e sento-me numa mesa ao pé da janela de onde se avista a praça. Pessoas percorrem os caminhos das suas rotinas de passo certeiro e cabeça baixa. Sabem de cor os tons da calçada, mas nenhuma delas sabe a cor do céu de hoje. (...)
    Retomo a atenção para a folha ainda em branco, porém, não tão em branco como o mundo que, mesmo colorido, está tão pouco escrito. Conto as pessoas que entram e saem do café, quantas delas, questiono-me, terão o coração pintado de palavras ou escrito com imagens, como a cor do céu de hoje?

Anoitequece

Anoitece em chamas
Trago farrapos de lume em mim
Não devias querer arder
Aqui dentro,
Embora eu queira queimar-te a pele
Em caminhos onde se entra
Somente com o arrastar de um beijo. 



                                                                                     Iolanda Oliveira